Sei que muitos de vocês estão preocupados. Estamos sentindo o impacto da crise humanitária que vivemos e sentindo o sofrimento dos mais jovens, dos nossos filhos ou de pessoas próximas. Eu também me preocupo. Nos 10 anos que tenho de experiência como psicólogo clínico, jamais lidei com tanta demanda e com tanta complexidade como agora. Já estamos colhendo evidências, também no campo científico, que indicam que teremos muito trabalho pela frente. Trabalho esse que não pertence somente aos profissionais de saúde, mas que deve alertar e convocar todos os que possuem a missão de educar crianças e adolescentes.

Seria fácil dizer que isto é consequência de nossa experiência com a pandemia. Certamente que a pandemia escancarou muitos de nossos problemas sociais e impactou nossas crianças e adolescentes. Mas não podemos nos furtar de enxergar questões que já estavam em curso, se intensificando e em grande medida ofuscando nossa capacidade de refletir.

A geração atual de crianças e adolescentes (chamada geração Alpha) possuí peculiaridades que percebo representar uma potência disruptiva em relação às tradições, costumes, preceitos morais e éticos condicionados em nossa sociedade. Os questionamentos e interesses que estas crianças estão expressando desafiam os mais velhos e, fundamentalmente, a escola.

Se olharmos com atenção para a história recente da humanidade, encontraremos outras gerações que causaram mudanças significativas nos tecidos sociais, também em contextos de crises humanitárias. Grandes pensadores, artistas e líderes surgiram nesses contextos. Não sem dificuldade, sem desafios.

As mudanças ou a necessidade de mudanças nas sociedades humanas refletem o próprio desenvolvimento do ser humano. Nós nascemos, crescemos, envelhecemos e morremos. A roda da vida indica para nós caminhos onde somos confrontados o tempo todo com a natureza impermanente de todas as coisas.

A criança com seus 10, 11 anos começa a sentir na metamorfose de seu corpo uma expansão das possibilidades intelectuais que exigem novos horizontes. Não basta mais o mundo doméstico, o afeto de seus cuidadores. A criança quer ver além dos véus que a protegem, quer ver o mundo, conhecer o mundo, interagir com o mundo. E buscando elementos para fora da vida familiar, começa a pensar a partir de si mesma. É neste momento que vislumbramos a formação de uma personalidade com forma, potência e características próprias. É um momento belo, contagiante e misterioso.

Mas também um momento delicado.

Vou fazer uso de uma imagem…

Outro dia uma lagarta virou casulo na porta de minha casa. Apenas um fio sustentava o casulo, justamente em um lugar de passagem, de movimento. Por vários dias, todos nós aqui em casa tomamos cuidado para não fazermos movimentos muito bruscos com a porta, para não esbarrarmos no casulo. Deixamos a natureza seguir seu curso, enquanto seguimos o nosso, com cuidado, com atenção. Depois de um tempo, chegamos em casa e vimos uma belíssima mariposa, pousada na porta. Ela deixou o casulo, completando sua metamorfose.

A natureza é uma grande professora. Ela nos ensina que nenhuma transformação vem sem riscos, sem demandas, sem cuidados, sem dor. Nós humanos, pensantes que somos, passamos por outro tipo de metamorfose, além das transformações de nosso corpo: As metamorfoses do espírito. As mudanças em nossa mente que ocorrem o tempo todo quando, no contato com o mundo, descobrimos novas formas, novas ideias, novos horizontes.

A mente não é uma entidade desconectada da realidade que nos cerca. Nós pensamos através daquilo que absorvemos do mundo. Linguagem, cultura, comportamento. Tudo o que absorvemos no mundo está em constante mudança e ressignificação conforme crescemos e nos desenvolvemos. Estamos o tempo todo nos metamorfoseando e o tempo todo lidando com os sentimentos gerados pelas mudanças, as de dentro de nós e das de fora de nós, que não se separam nunca.

Nossos filhos estão imersos em um mundo que demanda mudanças, projeta mudanças. Um mundo que está mudando. Nossas crianças e adolescentes estão cada vez mais em contato com o mundo fora do ninho familiar pela via das tecnologias de informação. Possuem cada vez mais conhecimento além daqueles que seus pais e a escola costumeiramente transmitem. Fazem seus casulos em portas, prontos para mirarem horizontes mais abertos… e mais complexos.

É claro que esta geração demanda mais cuidados, que expressam “de dentro” as crises que vivemos “de fora”. Eles questionam. Estão indignados. Acham entediante tudo aquilo que conserva. Querem chacoalhar tudo de uma vez. Alguns, mais sensíveis, sentem-se perdidos, tristes, desamparados. Outros, mais extrovertidos, se agitam, não se adaptam. Não conseguem se concentrar. E assim, de uma forma ou de outra, revelam seus mistérios, desafiando todos nós a repensarmos o que parecia tão óbvio. Nos provocam também a mudar.

Nossa preocupação não precisa estar fundada no medo. Pode ser apenas uma oportunidade, um momento de reflexão. É necessário. Mas o medo nos pega desprevenidos quando não sabemos o que fazer ou quando somos confrontados através de nossos valores enrijecidos. O medo faz procurarmos por respostas objetivas, óbvias. Respostas que nos ofereçam resoluções imediatas, efetivas.

Lido o tempo todo com isso. “O que meu filho tem?”, “Você identifica algum problema?”, “Você acha que ele tem algum transtorno?”.

O filósofo Martin Heidegger elucidou uma característica da era moderna que ele chamou de “era da técnica”. Apesar das muitas benesses possíveis para a humanidade provenientes do desenvolvimento tecnológico, uma sombra paira sobre nós: Tornarmos técnica. E isso significa, essencialmente, percebermos a nós mesmos como mecanismos de uma engrenagem funcional, fixa, absoluta.

E isso se expressa como? Ora, não descrevemos como cada etapa da infância funciona? Como uma criança deve se comportar? Como deve desenvolver interesse e se concentrar nos seus processos de aprendizagem? Como é um “corpo normal”?

E agora temos: Uma criança agitada é hiperativa, uma criança desatenta é TDAH, uma criança inteligente possuí altas habilidades, uma criança agressiva é TOD, uma criança “diferente” é TEA.

E temos as opiniões comuns: “Ele/ela não sabe o que quer”. “Não tem experiência nesse assunto ainda”. “Não deveria dizer estas coisas”. “Isto é influência da internet”. “Isto é influência dos amigos”.

Desde quando desistimos de perceber e pensar sobre as causas que nos impactam (e impactam nossos filhos!) e passamos somente a nos apegar a ideia de descrevê-los a partir de ideias gerais, de interpretações rasas, superficiais, de comportamentos?

Existe algo muito belo no pensamento, que todos nós conhecemos, sabemos, mas às vezes, esquecemos: O surgimento de ideias, de percepções claras, de “insights” que permitem para nós o ato da criação.

Não é à toa que a filósofa Hannah Arendt percebeu que a falta da reflexão conduz a um estado de banalidade que leva ao mal. Estamos suprimindo à imaginação e o sonhar. Estamos conduzindo nossa capacidade de pensar para apenas, submissos, passivos, aceitarmos explicações técnicas sobre nossa existência. E isto está afetando nossas crianças e adolescentes.

Reativos, nos apegamos às ideias que não acompanham as mudanças do mundo. Acreditamos que uma criança que não se adapta à escola possuí algo, intrínseco, orgânico, problemático, patológico. Afinal, o problema não pode estar em um sistema de ensino que não mudou muito desde o século XVII, correto?

Uma criança que imagina demais, que sonha, que no meio da aula olha para a janela e cria histórias… Passamos a enxergar esta criança não em sua potência mais expressiva, que é sua capacidade criativa, mas sim como uma criança que não sustenta sua atenção, uma criança possuidora de Transtorno de Déficit de Atenção.

O rebelde? Oras, é somente um hiperativo, um TOD.

Nós não estamos nos esforçando mais para interpretar com profundidade comportamentos que nos desafiam, de alguma forma. Nós queremos nomes. Às vezes, queremos até remédios para isso. Mas sobretudo, queremos resoluções imediatas, pois não temos tempo para acompanhar o desabrochar do casulo.

Reduzindo o cuidado à técnica, estamos criando pontos cegos que amarram nossa capacidade de acolher com imaginação, com uma percepção intuitiva que permite criar formas de proporcionar às crianças caminhos para que elaborem suas angústias.

O desenvolvimento de um ser humano é uma jornada repleta de curvas e mistérios. No desafio que uma criança apresenta está a semente de um futuro potencial a ser orientado para produzir sentidos e, consequentemente, habilidades. Não é difícil compreendermos isto, basta lembrarmos de nós mesmos, de nosso desenvolvimento. Como vocês eram, quando crianças? Que “trabalhos” davam para seus cuidadores? Quais histórias vocês contam, de resiliência, de transformação, de aprendizado?

É sim desafiador o momento. Exige de nós uma atenção diferenciada. Exige estudo. Exige dedicação. Mas cuidado nos enganos… O que enrijece não acolhe a mudança. E enquanto o mundo muda, se não acolhermos a mudança que grita de dentro dessas crianças e adolescentes como fontes primárias de potenciais transformações em nossa sociedade, corremos o risco de trancá-las dentro do casulo, dentro de tantos rótulos que surgem com essa roupagem de ciência, mas que aos poucos, aí sim, adoece o Ser que vive em cada um de nós.