Fui criança nos anos 90, cresci muito próximo dos avanços tecnológicos da época. Tive computadores em casa antes da maioria de meus colegas. Acessei “BBS” (uma espécie de protótipo da internet) e antes dos 10 anos já navegava na internet, uma novidade na época.

Desde muito cedo jogava videogame e com 11 anos já dedicava um bom tempo com partidas online. Não era nada comparado com o que vemos hoje. A internet era discada e eu precisava negociar com meus irmãos o uso da linha telefônica.

Mas lembro de horas e horas jogando…

E falando sobre isto. Era assunto na escola, motivação para os “nerds” se reunirem.

Hoje atuando como psicólogo ouço semanalmente pais preocupados com a rotina de seus filhos, principalmente em relação ao uso de dispositivos tecnológicos. Videogames, computadores, tablets e celulares.

Jogos eletrônicos e redes sociais tornaram-se inimigos dos estudos, da leitura, das atividades ao ar livre, de tudo o que imaginamos que tínhamos e que queríamos para nossos filhos.

O que talvez seja difícil de compreender – pois, ao criarmos um “bode expiatório” perfeito nos redimimos de nossas responsabilidades e compromissos – é que o problema não é o videogame, o celular etc., mas o conteúdo que é absorvido através destes dispositivos.

Eu leio muito. Eu gosto de ler. Também jogo videogame. Acesso a internet, redes sociais, desde criança. Eu não vim com um chip programado para ser um leitor ou para nutrir curiosidades sobre assuntos complexos. Eu fui educado para despertar esses interesses.

Meu pai me falava das estrelas, me contava sobre os mistérios do universo. E junto, me dava livros do Carl Sagan para ler. Meu irmão mais velho já vinha com uma bagagem literária. Me falou de Tolkien, O Senhor dos Anéis, de Frank Herbert, Duna (este eu sei que meu pai que indicou). Com 11, 12 anos aprendi a gostar de ler livros grandes, complexos, detalhados, profundos.

Nossa responsabilidade é “passar o bastão”. E o que transmitimos aos nossos filhos é o que eles podem vir a carregar como legado. A curiosidade inata de uma criança precisa ser constantemente estimulada. Começa na base. Se deixarmos nossos filhos caminhando sozinhos no mar de informações que o mundo oferece, estarão passivamente aceitando qualquer estímulo supérfluo que chegar.

Uma criança curiosa não irá suprir suas necessidades com joguinhos alienantes de celular. Ela irá preferir uma aventura que fornece um enredo emotivo, desafiador, inspirador. É nossa responsabilidade oferecer e acompanhar o desenvolvimento cultural de nossos filhos.

A “preguiça” intelectual de uma criança não é obra do acaso. É falta de estímulo. Não é produtivo somente exigir, fazer discurso moral. Dizer para a criança que ela tem o privilégio de estudar. Ficar comparando com a “nossa época”.

Hoje em dia castigo de criança é ficar sem o celular.

Eu nunca vi isso funcionar. É paliativo. Ilusão.

Se culparmos sempre a criança sem refletirmos sobre o modo como estamos “passando o bastão”, não sairemos do lugar.

Já tive oportunidade de acompanhar o desenvolvimento de muitas crianças e adolescentes. Da periferia de São Paulo nos tempos em que trabalhei em uma ONG, em escolas particulares ou hoje na minha clínica o padrão é um só: Crianças curiosas, que desenvolvem gosto por leitura, que fazem boas perguntas e não se contentam com conteúdos supérfluos são crianças que receberam esse legado de alguém.

Dos pais, tios, irmãos, amigos, professores, terapeutas… Alguém acolheu, mostrou, indicou, pacientemente ensinou, acreditou.

Com afeto, com amor, com carinho, atenção, vontade.

Essa é nossa maior responsabilidade.

Agora, atenção: Nossas expectativas em relação aos nossos filhos podem ser pontos cegos na nossa compreensão sobre eles mesmos. Cada criança desenvolve ao seu modo, na sua relação com o mundo, suas potências. E isso incluí aquilo que nós, enquanto pais e educadores, podemos oferecer.

Uma criança curiosa é curiosa ao seu modo. Algumas serão mais acadêmicas, desenvolverão gosto por estudos. Outras, mais artesãs. Não deveríamos nos pautar somente pela condição social para determinar o que uma pessoa pode ou não desenvolver. Essa relação é sutil, mas fundamental para educarmos nossos filhos de forma que eles possam se sentir satisfeitos com eles mesmos.

Existe diversidade, mas sobretudo, desenvolver essa diversidade passa pela nossa sensibilidade e disposição em acolher e ensinar.