Muitos meninos que atendo tem me perguntado sobre o caso de racismo direcionado ao jogador brasileiro Vinicius Jr., do Real Madrid.

É claro que situações como essa necessitam de repúdio e busca por soluções imediatas. O que se vê nos jornais ressoa o coro por punições. Este é instinto mais básico que temos. Queremos testemunhar os racistas sendo punidos.

Está tão profundamente enraizado em nossos pensamentos a ideia de que a resolução de um problema reflete a eficiência da técnica aplicada que já não dispomos nem mesmo de tempo para refletir melhor sobre a questão, seja ele qual for. Neste caso de racismo no futebol, a solução imediata que surge é punir. Punir e reprimir. Silenciar o que nos causa o desconforto.

O silêncio parece eficiente, pois nos entrega a sensação de que algo foi feito. E paramos por aqui, pois o espetáculo continua. Afinal, só queremos ver um jogo de futebol em paz.

A função da punição é nos tornar dóceis, pacificar nossos corpos para que se “endireitem” nos lugares onde devem ficar e como devem ficar. Sobre isso disse o filósofo Michel Foucault:

“ainda que não recorram a castigos violentos ou sangrentos, mesmo quando utilizam métodos “suaves” de trancar ou corrigir, é sempre do corpo que se trata – do corpo e de suas forças, da utilidade e da docilidade delas, de sua repartição e de sua submissão.” (Vigiar e Punir)

Nós queremos submeter os racistas à lógica do jogo, mas não estamos nos perguntando sobre o campo em que eles deixam suas docilidades para se manifestarem. E não o fazemos, pois estamos tão condicionados a resolver tudo com base nessa lógica de punição dos corpos que não nos ocupamos em compreender o fenômeno no seu âmago.

E sem compreender, continuamos perpetuando as mesmas condições que geram não somente o racismo, como também o lugar do racista, o lugar do homofóbico, o lugar do agressor etc.

O futebol.

Mas eu não quero falar de futebol somente. Eu quero falar de meninos. E da educação que recebem.

O futebol é parte de nossa cultura. Não só a brasileira, como da cultura ocidental, em larga escala. No nosso contexto de Brasil, o futebol ainda é um esporte direcionado principalmente aos meninos. E tem suas peculiaridades, seus modos, comportamentos e discursos.

Meninos que são ensinados a jogar futebol também são ensinados a torcer. Geralmente o clube do coração é passado por influência de algum familiar. Eu percebo que boa parte das crianças não demonstram tanto interesse assim em acompanhar pela televisão um jogo de futebol. Como toda criança, preferem brincar, ou seja, jogar. Mas estar ali no domingo para assistir uma partida do time preferido pode se tornar um rito próprio de algumas famílias.

Crianças irão acompanhar o comportamento dos adultos. Aprenderão a torcer. Absorverão os modos típicos relacionados ao mundo do futebol. E logo aprenderão a xingar, a provocar, a antagonizar. Basicamente, torcer em uma partida de futebol passa pelos momentos de catarse dos bons momentos, como uma bela jogada, o gol ou a vitória, permeados por reclamações, gritos e xingamentos, quase sempre com um tom agressivo, explosivo.

Este caldo futebolístico recaí na brincadeira. No jogo. É bastante frequente reclamações que recebo de meninos que não gostam de futebol sobre a “turma” do futebol. Falam que provocam, que agridem, que são chatos. É interessante pensar nessa diferença. O próprio jogo, o brincar de futebol, torna-se uma atividade difícil para alguns meninos. Principalmente para aqueles que não são tão habilidosos assim, ou que não expressam os comportamentos típicos do jogo.

O futebol acaba marcando um modelo de masculinidade que pode ser ferozmente defendido por seus adeptos. Quem nunca escutou “futebol não é para meninas” por aí? Essa demarcação de gênero expõe que os comportamentos comuns de um campo de futebol é “coisa de menino”. E assim, normalizamos o que é dos meninos, sem medirmos suas consequências.

É essa normalização que reforça comportamentos agressivos, preconceituosos, pois ali no campo a sociedade já não enxerga mais o xingamento em seu significado próprio, mas apenas como um meio de expressão típico do modo de jogar futebol, de torcer por um time de futebol.

Mas para pensarmos nesse fenômeno precisamos retirar algumas máscaras do jogo. Se estamos lidando com a formação de crianças e de um modelo de masculinidade, não vamos ser ingênuos e considerar que esses comportamentos ficam restritos ao futebol e que crianças sabem diferenciar uma coisa de outra. No mundo real, meninos estão sendo educados de forma a reforçar preconceitos, de todos os tipos. No imaginário da criança que entra em um campo de futebol, o outro pode se tornar somente um outro jogador a ser batido, ou um colega de time que pode ajudar ou atrapalhar o desempenho do jogo. O mesmo colega que se senta ao lado da carteira durante a aula e oferece ajuda em uma lição escolar, no campo do jogo é o “burro”, o “viadinho” etc.

Esses meninos estão apenas reproduzindo o que os adultos já fazem, geralmente sentados passivamente na frente da TV. Qual é a condição necessária para que o xingamento possa se tornar uma ofensa de cunho racista? Todo o caldeirão já está posto. O que ferve ali são instintos primais de sobrevivência direcionados para um momento de entretenimento, de prática desportiva. É claro que todo esporte competitivo ativa em nós potências agressivas, o medo e o estresse. Mas como direcionamos essas potências dita o limite entre o que é aceitável e o que acaba expressando nossas ignorâncias mais baixas.

E é nesse caldeirão que muitos meninos estão se formando. Alguns apenas ficarão no estereótipo de uma masculinidade impositiva, agressiva, pouco compassiva, pouco sensível e tratarão colegas que não se expressam da mesma forma com desdém. Outros, podem puxar a corda um tanto mais – talvez pela mistura de outras condições sociais – e afirmarem essa masculinidade de forma absolutamente preconceituosa. Um dia, serão homens, e se a vida não os ensinar outros valores, poderão estar em algum estádio mundo afora gritando como se estivessem protegidos pelos deuses do futebol, palavras racistas, homofóbicas etc.

Os racistas precisam ser punidos. Mas a punição não resolve o problema, apenas silencia homens que encontrarão outros cantos para serem o que são.

Quando é que vamos começar a pensar nessa questão e parar de achar que é normal e que está tudo bem?