As Crônicas de Nárnia de C. S. Lewis inicia sua aventura fantástica em um mundo bem real. Talvez poucos se lembrem disso, pois a imagem do guarda-roupa como um portal para um mundo de fantasia acaba prevalecendo em nosso imaginário. Afinal, “ir para Nárnia” é uma necessidade de todos nós quando a realidade se mostra brutal demais para darmos conta sem os escapes da imaginação. Mas Lewis nos apresenta de início um cenário triste e que muitas crianças de fato viveram: A quarentena imposta aos filhos de famílias inglesas durante a segunda guerra mundial. Crianças precisaram deixar seus lares, suas famílias, para se protegerem e para que seus pais pudessem estar livres para servir ao país.

Lewis deu visibilidade às crianças em um momento em que o front de batalha era o centro das atenções. As Crônicas de Nárnia é uma obra de resiliência de um tipo bem peculiar, onde a fantasia emerge como um modo de ressignificar a lida com as inseguranças de um mundo em crise. Crianças são extremamente resilientes, muito provavelmente por conservarem os canais abertos à imaginação e à fantasia.

Hoje vivemos mais um período de crise humanitária e novamente nossas crianças parecem invisíveis diante dos desafios que se mostram urgentes. Mas não podemos nos esquecer de que as crianças de hoje conduzirão o mundo amanhã. O modo como cuidamos das crianças hoje impactará o mundo amanhã. Crianças ainda viveram pouco. Não possuem experiência nem memória o suficiente para discernir um mundo diferente do que experimentam hoje. Um ano sem escola já é suficiente para que uma criança se acostume a não ir para a escola. Não aprender vivamente, nem experimentar coisas diferentes já é suficiente para que uma criança perca o vigor necessário para estimular sua curiosidade.

Algumas crianças, talvez muitas, talvez muitas a ponto de precisarmos nos preocupar bastante, estão simplesmente sendo deixadas como em compasso de espera, alienadas em tecnologia, horas e horas executando tarefas mecânicas e repetitivas, como se esperassem para um dia poderem voltar a ser crianças novamente. Um dia, quando tudo passar. Mas um ano inteiro na vida de uma criança já é uma vida. Já representa muito. Tanto, que deveríamos realmente nos atentar ao fato de que o impacto deste momento nesta geração pode representar o grande desafio que teremos no futuro.

Não posso aqui ter a pretensão de sugerir ideias para o cuidado que devemos ter neste momento com as crianças. Nossa realidade é complexa e cada família dispõe de recursos diferentes. Mas precisamos convocar em nós a responsabilidade do zelo pela saúde mental e pela educação de nossas crianças. Precisamos estar atentos. Se dispormos de nossa atenção para este cuidado, poderemos usar a imaginação e a criatividade para oferecermos o melhor possível para as crianças neste momento.

Nárnia é um mundo de fantasia repleto de desafios, sombras, mas também de heroísmo, coragem e virtude. É este o legado da fantasia para nós. Resgatar o que temos de mais potente para sermos resilientes. Vamos olhar para as crianças neste momento, elas precisam de nós.

 

Rafael Ladenthin Menezes

Psicólogo

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